O DESMENTIDO INVOLUNTÁRIO E IMEDIATO

O Colega, bom como dinheiro achado, já está morando na Eternidade, e certamente  será convocado para integrar uma das  Câmaras Julgadoras do Juízo Final. Em vida, conquanto algo exagerado, foi exemplo de trabalho e dignidade para a Magistratura Paulista.

Em maio ou junho de 1980, ele e a esposa foram visitar minha filha Lívia Maria, então recém nascida. Depois de apresentada a princesa, as mulheres ficaram conversando  pela casa – justamente onde hoje é meu escritório, na avenida 8 A — e nós ficamos a conversar na copa. Como fomos colegas de concurso, e ingressamos juntos na Magistratura em novembro de 1979, naturalmente, passamos a falar de nosso noviciado, certo que trabalhávamos como juízes substitutos, em Comarcas diferentes.

Falamos sobre os colegas titulares, sobre sua boa ou má vontade para com os novatos, sobre questões novas para nós, embora já não fossemos mais tão jovens como operadores do direito (expressão que na época não era usada). Também sobre as dificuldades de se analisar os processos sobre a ótica   do Juiz, acima do interesse das partes – grande novidade para nós que havíamos advogado bons anos – e o trabalho representando pelo estudo dos processos.

Quero aqui lembrar, aos que não são do ramo, que o trabalho do Magistrado não se limita às tardes, quando as audiências do Fórum são realizadas. Cabe ao Magistrado estudar os processos das audiências, decidir questões no curso do processo, sentenciar os feitos e, sobretudo, estudar para despachar os processos que a cada dia aumentam mais, sem que se consiga meios para diminuir o  ajuizamento deles, nem para solucioná-los com mais presteza. Assim era há mais de vinte anos, e hoje não deve ser diferente, se não  até mais pesado o volume de processos enfrentados por nossos Juízes, de manhã, de tarde e de noite, no Fórum e em casa.

Ocorre que o colega  – que como já dito acima, era algo exagerado – dizia-me que não estava enfrentando dificuldade alguma, que conseguia despachar quase tudo no Fórum, e que os raros processos que trazia para sua casa ele os decidia na mesma noite, após as pesquisas e estudos necessários, e já os devolvia a cartório no dia seguinte. Enfim, estava sempre zerado, sem qualquer processo para sentença ou despacho.

É claro que  eu percebi algo estranho em tais afirmações, mas limitei-me a dizer que o invejava, pois não conseguia dar conta de todos os despachos no Fórum, que sempre trazia processos para estudar e decidir em casa e que, embora cumprindo os prazos  legais, não estava conseguindo despachar e decidir tudo na mesma noite, para o dia seguinte. Disse, com a  mesma sinceridade, que estava-me difícil dar conta de todo meu serviço, como Juiz Substituto, quase sempre ampliado pelos colegas titulares, a pretexto de se adquirir experiência.

Foi aí que as mulheres chegaram até onde estávamos, e a esposa do colega dirigiu-se a mim com um certo encantamento. Dizia ela que minha casa, na verdade muito modesta, tinha um conforto que a deles não dispunha:  um gabinete de trabalho, onde ficava minha pequena biblioteca, e os processos para estudo e decisão. Eu lhe disse que fizera tal adaptação, inclusive com entrada externa, porque  durante minha advocacia, era comum ser procurado em casa por clientes, e também lá trabalhar, sem que isto atrapalhasse o ambiente  familiar.

Mas a esposa do colega foi além, ao dizer que lamentava sua casa não dispor de local semelhante. E isto porque não aguentava mais ver processos confiados ao trabalho do marido, na sala, na cozinha, no  quarto, etc. E que ali ficavam por bastante tempo.

Todavia, o colega não passou recibo. Mudou o rumo da conversa para futebol ou pescaria, e ficamos todos conversando, bebendo e comendo, até o final da visita.

Não direi o nome do colega, claro. Devo, todavia,  registrar que suas decisões sempre foram precisas e preciosas. Quando recorridas, quase sempre foram mantidas pelos Tribunais.

Irineu Carlos de Oliveira Prado

Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça de S. Paulo,

advogado militante na Comarca de Rio Claro, e Membro Efetivo da Comissão do Cooperativismo da OAB, Secção de S. Paulo.

 

(Desmentido involuntário e rápido doc)

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