GOLPE DE 64: UM POUCO DA HISTÓRIA POLÍTICA DE RIO CLARO E A DE UM SINDICALISTA FERROVIÁRIO.

No dia 11 de abril passado, nossa Câmara Municipal realizou Sessão Solene, com a finalidade de desagravar os vereadores e suplentes que a mesma edilidade, há cinquenta anos, afastou da política local, cassando os mandatos dos vereadores (Irineu de Oliveira Prado, Aníbal Fuzetti e José Crespo) e de um rol imenso de suplentes. Embora suplentes não disponham de mandato a ser cassado, a edilidade rioclarense conseguiu o duplo prodígio de, sem dispor de poderes para tanto, cassar mandato até de suplentes. Mas o importante é que, através da Resolução 02/14, a edilidade rioclarense redimiu-se do grande equívoco.

A Sessão Solene foi emocionante. Vários oradores usaram da palavra, enaltecendo as figuras dos homenageados, nas pessoas de seus parentes, porquanto todos eles já na vida eterna. O ato culminou com a entrega aos parentes de um diploma a materializar a homenagem.

Permitiram-me o Presidente e o Protocolo da Casa, generosamente,  que eu usasse da palavra naquela histórica Sessão, com toda certeza por ser filho de quem, nos primórdios do golpe de 1º. de abril tenha mais sofrido, juntamente com seus familiares, pelas primeiras das arbitrariedades inúmeras da ditadura que então se iniciava, e quiçá por ter sido testemunha presencial dos fatos, especialmente do lado vítima.

Devo reconhecer, como fiz na oportunidade, que Deus é grande e generoso, ao permitir-me que cinquenta anos depois eu ainda estivesse vivo e em condições de contar para os mais novos o quanto de arbítrio se pode praticar em nome de uma democracia que não aconteceu, em decorrência do Golpe de 1964.

E das dores e danos morais e materiais que isto puderam ocasionar a tantas e tantas famílias.

No caso daquela Sessão, cuja ocorrência bem qualifica e enobrece nossa  Câmara Municipal, buscou-se, simbolicamente, restituir mandatos de vereadores, e os direitos dos suplentes,  cassados em sessão de 11 de abril de 1964, ao primeiro minuto.

Os que tiveram a oportunidade de examinar as atas das respectivas sessões camarárias viram que, na noite de 1º. de abril, houve sessão extraordinária, em que se pretendeu, como foi feito, manifestar apôio aos golpistas (como se isto fosse necessário). José Crespo e Irineu Prado manifestaram-se contrariamente,  por reconhecerem João Goulart, como o legítimo chefe da Nação. Aníbal Fuzetti estava ausente.

Na sessão do dia 04 de abril nada se decidiu de concreto sobre o tema, na de 10 de abril foi apresentado o projeto que, com emendas, resultou no ato que esta sessão visa reabilitar, já então com a renúncia de José Crespo. E, no primeiro minuto do dia 11 de abril, consuma-se a arbitrariedade, com registro da presença, e convidado para ter assento à mesa diretora, do delegado de polícia titular do Município.

Não se sabe se a autoridade policial foi convidada para prestigiar a grande covardia, ou se ali estava para intimidar os que se mostraram nada corajosos.

O fato é que, após diversos oradores se manifestarem como sendo aquele ato de respeito às alegadas tradições democráticas de Rio Claro, que os comunistas estavam a planejar fuzilamentos e outras justificativas que, hoje, mostram-se todas infantis, a proposta foi aprovada por unanimidade. E os cassados, de um nada, passaram  a ser rotulados como terríveis comunistas, “comedores de crianças”, como se usava na época para desqualificar os que partilhavam desta doutrina.

Assim, sem qualquer fundamentação legal anterior, foram violentamente jogados ao lixo a manifestação democrática de milhares de eleitores rioclarenses. E aquele que meses antes havia sido eleito secretário da Mesa, pela grande maioria dos vereadores – exatamente Irineu de Oliveira Prado – passou a ser considerado, pelos mesmos pares que então o distinguiram, grande ameaça à democracia.

Tenho refletido nestas cinco décadas o que teria sido a grande motivação, para que nossa Câmara Municipal achasse importante, até mesmo fundamental, pelo que se tem da leitura das atas, cassar direitos e manifestar seu apôio ao golpe vitorioso, como se os generais estivessem a necessitar do apôio de vereadores, embora vereadores de Rio Claro.

E mais, o que os vereadores e suplentes poderiam ter feito para que o golpe não se revelasse vitorioso?

Teria sido uma forma de se livrar dos adversários, exatamente os eleitos pelos partidos trabalhistas legalmente existentes. Ou de se garantir perante os vitoriosos, já que se dizia que os objetivos golpistas eram de acabar com os subversivos e corruptos?

O triste é que Rio Claro emprestou solidariedade ao início daquilo que se revelou, meses depois do primeiro de abril, a mais sombria das ditaduras. E sem que isto se fizesse necessário.

Poucos, decorridos cinquenta anos, devem estar vivos. Estou certo, porém, que todos devem ter-se arrependido. Até porque  ninguém deixou de aplaudir o fim da ditadura.

Os que me conhecem, e que me reconhecem sob minha embranquecia cabeleireira, sabem que em abril de 1964 eu já era quase adulto (com 16 anos) e, com os fatos, adulto me tornei.

Mais indigno se mostrou o ato arbitrário da edilidade, naquele dia 11 de abril – 50 anos depois  significativa e simbolicamente repudiado – é que Irineu Prado encontrava-se preso, sem ordem judicial ou culpa formada, como tantas e tantas outras prisões naquela triste quadra de nossa História.

Justamente neste ponto é que me permito agradecer a oportunidade que o Senhor Todo poderoso me concedeu de tornar público, (na sessão solene, e agora), como se deu o testemunho privilegiado a que me referi inicialmente.

Pelas duas horas da madrugada, no dia 05 de abril de 1964, exatamente dia em que Irineu completaria seu 42º. aniversário, fui acordado por conversa de meu pai e minha mãe, na sala de casa. Falavam com um corajoso ferroviário, maquinista, que correra avisar meu pai que investigador da polícia civil estivera à sua procura, na estação, sem esconder que desejava prende-lo. Mas, quase sem tempo de falar para o colega que não havia  como nem porque fugir, e esconde-lo  no fundo da casa, o investigador bateu à porta, a fim de cumprir a ordem que nenhuma autoridade lhe dera por escrito.

Tenho muito presente na minha memória a cena: minha mãe chorando, e meu pai dando a que talvez tenha sido a maior responsabilidade que me foi atribuída: “você é o chefe da Casa, agora. Não sei para onde vou, nem quando volto, nem se volto. Procure o advogado que você já sabe quem é, o seu Tio João e Dr. Schmidt (prefeito, eleito com o apôio do PTB).”

Com efeito, telefonei para meu Tio João, em Jundiaí que contatou algumas autoridades militares mas que, embora nada existisse contra Irineu, sem saber onde estava detido, nada pode ser feito.

O advogado, argumentando que estávamos em tempos excepcionais, nada fez, ou se fez, nada conseguiu.

Com o Dr. Augusto Schmidt Filho, que foi eleito com o apôio do PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, e de Irineu, então 2º. Secretário da  Câmara Municipal, só consegui falar cinco dias depois, parecendo-me que evitava encontrar-se comigo. De qualquer forma, disse que nada poderia fazer por aquele de quem se dizia amigo, e que uns dias antes estivera tomando café junto ao fogão de lenha de minha mãe.

Com o Delegado de Polícia Adjunto, Dr. Nestor Penteado, só obtive informações reticentes: ora dizia que meu pai estava em alto mar, em navio prisão, ora da Ilhas das Cobras, etc.

Demorou dez dias para que fosse descoberto que Irineu estava preso em Piracicaba, onde ao menos foi tratado com o respeito possível. Forneceu para muitos que entravam e saiam do presídio, todos arbitrariamente, o telefone de seu irmão em Jundiaí. Um deles teve a coragem de falar com Tio João que, vindo a Piracicaba, conversou com o irmão, e após veio a Rio Claro falar com Dr. Schmidt (como que duvidando do que eu lhe contara) e, confirmada a indiferença, manteve contatos com oficiais militares seus conhecidos em Jundiaí (onde era Chefe da Estação Jundiaí Paulista) e, no dia 20 de abril, contados 15 dias de sua prisão, foi devolvido à sua residência, na Vila Indaiá, em Rio Claro.

Não respondeu a qualquer inquérito ou processo em decorrência de sua atividade política, o que mais aumenta a arbitrariedade da cassação que se reabilitou, a qual se deu enquanto preso se encontrava. Ou seja, ofendeu-se a princípio do direito à defesa, existente desde os tempos imemoriais, bem assim  o de que inexiste crime sem lei que anteriormente o defina.

Mas a perda do mandato de vereador em 1964 não foi a única a pesar sobre Irineu Prado e sua família:  em 24 de junho daquele ano, tendo como fundamento a cassação, foi afastado por sua empregadora, a então Companhia Paulista de Estradas de Ferro, para responder a inquérito judicial trabalhista, acusado da falta grave inexistente (subversão), em que saiu-se vitorioso, conquanto ficasse vinte e oito meses sem receber salários.

A ferrovia já era estadual e o então governador para agradar aos poderosos que logo mais o defenestraram, não perdeu a oportunidade de fustigar o cassado Irineu, desafeto (como opositor nas hostes sindicais) de certo deputado, correligionário do governador e, logo mais também cassado pelo AI 5, com perda de seus direitos políticos e sindicais.

O que dá bem uma idéia do todos nós de sua família padecemos. Irineu trabalhou como pedreiro, carpinteiro, encanador, vidraceiro, etc., sempre como autônomo, pois como empregado nada conseguiu.

Também para mim, deixando de cursar o clássico em 1965, e prosseguindo apenas com o técnico em Contabilidade no Alem, muito difícil foi a obtenção de trabalho.

No Ribeiro, apenas um colega, e do curso científico, veio manifestar solidariedade para com o drama familiar. No Alem, uma das colegas que participava da comissão de nosso Boletim Cultural “O Idealista”, assustada (pobrezinha) demitiu-se através de carta com firma reconhecida.

Enfim, o medo de ser amigo de quem fora preso, era de tal ordem, que mesmo uma namoradinha deste, agora juridicamente idoso,  tratou de despedi-lo. O que, muitos anos depois eu achei até muito bom, dado que a beleza havia-lhe deserdado.

Mais sofrimentos não preciso nem quero contar. O importante é que eu e meus irmãos (uma pequena e outros não nascidos) chegamos à idade adulta tendo aprendido sábias lições de nosso pai, de amor à verdade, à Justiça e a Deus, embora certos de que nunca nos aproximaremos das suas elevadas virtudes.

Em termos ideológicos Irineu de Oliveira Prado sempre se disse sindicalista. Ofendia-se bastante ao ser chamado de comunista, já que nunca se filiara ao Partidão, conquanto bem se relacionasse com os seus partidários. Contava que, como aspirante à filiação naquele partido, indispôs-se com a direção local porque, após ter sido decidido que, em 1955, o candidato a ser apoiado era o Dr. Augusto Schmidt Filho, a direção central impôs apôio a outro candidato que teria (segundo se ventilou depois), contribuído com os cofres partidários. E como Irineu já havia informado ao Dr. Schmidt a respeito do mencionado apôio, rompeu com o Partidão, ao qual sequer se havia filiado.

Como fiz da Tribuna da Câmara Municipal, na solenidade, em nome de meus familiares e também na dos demais injustiçados em abril de 1964, devo expressar a  todos os atuais vereadores o mais elevado pleito de congratulações pela realização do ato que repôs no seu devido lugar a tradição democrática desta Cidade Azul.

Lamento que os ofendidos já não estejam mais entre nós. Como também minha genitora e minha irmã Albertina, assim como outras esposas e filhos. Todos eles, onde quer que estejam, sentiram-se homenageados.

A bem da  verdade, por mim  minha família, a homenagem prestada pela edilidade rioclarense é até além do necessário e ou merecido.

Irineu ter sido eleito e reeleito nas duas legislaturas que se seguiram à cassação de 1964, sempre por expressiva  votação, foi a resposta que o povo de Rio Claro deu aos seus ofensores.

E mais, a Lei Municipal 3.154 de 28.03.2001 que atribuiu à praça pública da rua 14 com avenida 26 o nome de “Vereador Irineu de Oliveira Prado – Ferroviário e Sindicalista”, em projeto de lei do então Vereador Fernando de Godoy Lima Filho, também ele filho de ferroviário, e aprovado por unanimidade, enche de justo orgulho os filhos, netos e bisnetos de Irineu de Oliveira Prado. É, sem exagero, muita homenagem para um simples ferroviário e sindicalista, que haverá de ser sempre lembrado pela defesa dos direitos dos trabalhadores, em especial dos seus colegas ferroviários. E isto numa época (até 64) em que a Paulista tinha significativa importância econômica em Rio Claro, no transporte de cargas e passageiros, e como a maior empregadora do município.

É verdade que a ferrovia hoje está minguada, apenas com a apagada presença da ALL, mas a sua importância, ainda hoje, pode ser medida pela significativa presença na sociedade rioclarense do Grêmio Recreativo dos Ferroviários, da União dos Ferroviários Aposentados e da Banda União dos Artistas Ferroviários.

Na verdade, não há como separar a ferrovia da vida de Rio Claro, embora o desgoverno deste Estado e deste País, tenha transformado as estradas de ferro em monumental sucata, enquanto no  mundo  desenvolvido, o transporte ferroviário é dos mais utilizados.

A Companhia Paulista de Estradas de Ferro, mais que centenária, e cujos trilhos estão hoje enferrujados pelo desuso e pelas lágrimas dos ferroviários, foi a maior empregadora de Rio Claro. Mais de três mil ferroviários ativos, nela mourejavam. Perto de vinte trens de passageiros corriam diariamente em suas linhas para a Capital, e outros tantos para o interior. O número de trens de carga não era menor. Quase tudo era transportado nos vagões da Paulista, afora o conforto e pontualidade oferecidos pelos seus trens de passageiros.

Várias gerações de rioclarenses prestaram serviços à Paulista. Em toda família de Rio Claro há algum membro que tenha sido ferroviário. Bastaria, para destacar a importância dos ferroviários em nossa cidade a lembrança da banda União dos Artistas Ferroviários,  do Grêmio Recreativo dos Empregados da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, e da UFA – União dos Ferroviários Aposentados.

Manifestei-me em ofícios endereçados ao senhor Prefeito e a todos os Vereadores, quando da promulgação da Lei 3.154/2001, nos seguintes termos: “Conquanto meu querido progenitor tenha-se sempre sentido homenageado pela oportunidade que o Todo Poderoso lhe propiciou de servir ao próximo e, em especial, a seus companheiros ferroviários, tendo a honra de ocupar assento nessa edilidade em três legislaturas, a atribuição de seu nome a uma praça pública na cidade que ele tanto amou, haverá de permitir que as novas gerações, mirando-se no exemplo de sua luta, possam preocupar-se com melhores condições de vida dos seus semelhantes, e com os direitos dos mais humildes”.

É assim que Irineu —  certamente ao lado dos justos, no aguardo do veredicto a ser proferido pelo  Supremo Julgador — gostaria de ser lembrado pelos que passarem por aquela Praça: homem simples, ferroviário que militou em seu sindicato, inclusive como oposicionista, que foi honrado com três eleições à Câmara Municipal de Rio Claro, e que, a seu modo, tentou mudar o mundo. Aliás, disse-lhe eu, numa de nossas últimas conversas, que se muitos como ele existissem, por certo o mundo seria outro, muito melhor.

Referindo-me um pouco que seja, da história de meu pai, não  posso ignorar sincero e especial agradecimento a um amigo e irmão, o também ferroviário e Sindicalista Tadeu Pereira Leite que, através de gestões diplomáticas, permitiu que Irineu partisse desta vida como sócio do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Paulista (ao qual se filiara na década de 1930, ao ser admitido na ferrovia, e do qual foi diretor por três mandatos), honrado com a bandeira da entidade envolvendo sua urna mortuária.

É que, como poucos sabem, algum tempo antes de sua morte, por absurdo que possa parecer, Irineu fora expulso injustamente dos quadros sociais do sindicato, sem direito de defesa, porque houvera criticado seu presidente. Providencias judiciais não iriam permitir rápida reintegração aos quadros sociais. Felizmente, a mão de Deus, através do querido amigo Tadeu, permitiu que  o problema fosse superado, ainda em vida do homenageado.

O curioso é que Irineu assim chamado por ter nascido no dia de Santa Irene, veio a falecer na sede da UFA – União dos Ferroviários Aposentados, ao ser inaugurado o Salão Nobre da entidade (que haveria de receber seu nome), preparando-se para discursar, exatamente no dia de Santo Irineu, a 28 de junho de 1997.

Encerro  agradecendo a oportunidade de registrar rápidos registros da história política de meu querido pai, reproduzindo as palavras de Paulo, na Segunda Epístola a Timóteo, Capítulo 4, versículo 7, que bem traduzem o que homenageado haveria de pronunciar, tivesse isto lhe sido possível: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.”

Não posso, todavia, deixar de comentar que em 1996 fui tomado de alguma apreensão, felizmente em vão. É que meu avô Leopoldino, getulista que era, foi preso em 1932, na revolução constitucionalista. Trinta e dois anos, em 1964, o preso foi meu pai, na Revolução/Golpe de estado de 1964. Porém, em 1996, passados outros 32 anos, ninguém da família foi preso político.

 

Irineu Carlos de OLIVEIRA PRADO

Desembargador Aposentado (TJ/SP).

Advogado militante nesta Comarca.

e-mail: oliveiraprado@aasp.org.br

www.oliveirapradoadvogados.com.br

Publicado na Revista nº 14 do Arquivo Municipal de Rio Claro -SP, Outubro/2014, página 23.

Link para acesso à edição do jornal digital: http://www.aphrioclaro.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/07/REVISTA_N_14___OUTUBRO_2014.pdf

 

 

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