MAGISTRADO & POETA
Irineu Carlos de OLIVEIRA PRADO
Tive a honra de atuar, na hoje 36ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, juntamente com o Desembargador José Luiz Palma Bisson, recentemente lembrado em grupo de Magistrados Aposentados, que participo.
Palma Bisson – seu nome regimental – deixou-nos precocemente, em 2014; com apenas 58 anos passou para a eternidade, onde deve integrar Turma Julgadora do Juízo Final, mercê de sua retidão como bom cristão, e Magistrado de escol. Ao par de seus elevados predicamentos jurídicos, tinha destacada veia poética, cujos Votos bem o demonstravam.
A Divina Providência trouxe à sua relatoria, por sorteio, recurso de Agravo de Instrumento interposto por jovem, filho de marceneiro, como ele, a quem Juiz de Marilia negara os benefícios da assistência judiciária gratuita, ao entender não provada sua condição de pobreza, e por estar representado por advogado particular.
O jovem pleiteava indenização de um salário mínimo mensal, porque seu pai, atropelado por uma motocicleta, veio a falecer.
Vejam os leitores se o Voto, vencedor, a seguir transcrito, sobre distribuir a merecida Justiça, não é profundamente poético.
“É o Relatório.
Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele – com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, filho de marceneiro, como você, a missão de reavaliar sua fortuna.
Aquela por mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina da marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde estes dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que nestes dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, ao pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais do que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas de sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte, um deles é, e não deixa de sê-lo mais uma vez, nem por estar com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes, e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca de quase sempre nada, ou em certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defende-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos.
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica esse seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação de tutela recursal.
É como marceneiro que voto.”
O Autor é Advogado e
Desembargador Aposentado (TJ/SP).
E-MAIL: oliveiraprado@aasp.org.br

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